espiritualidade e devoção
1. De Santo Agostinho à Recoleção agostiniana
Para entender o nosso tema, faz-se necessário que voltemos inicialmente o olhar para a grande figura de Santo Agostinho e sua relação com a vida religiosa na Igreja. Santo Agostinho não fundou propriamente uma Ordem religiosa, até porque não existia este conceito no tempo em que viveu, entre os séculos IV e V. Muito embora seja reconhecido e venerado como Fundador.
Em sua fecunda experiência de cristão e de pastor da Igreja, o Hiponense teve a oportunidade de realizar algumas “fundações” particulares de comunidades locais, baseadas na vida comum segundo o evangelho e no desejo de servir à Igreja e difundir, na expressão do Apóstolo São Paulo, o “bom odor de Cristo” por meio de uma convivência exemplar, em outras palavras, evangelizar a partir da comunidade “religiosa” – diríamos hoje, então se empregava o termo técnico “servos de Deus”.
Uma vez que Santo Agostinho foi ordenado Bispo e chamado a presidir a Igreja de Hipona, dedicou aos irmãos de suas fundações o texto que ficou conhecido como a sua Regra. Juntamente com este texto, muitas de suas numerosas cartas e alguns de seus sermões trazem orientações preciosas para aqueles e aquelas (pois havia também comunidades femininas de inspiração análoga), congregados na unidade.
O patrimônio dos escritos e ensinamentos dos chamados Padres da Igreja, entre os quais refulgia sem dúvida o próprio Santo Agostinho, era a base sólida para estabelecer os princípios que norteassem as formulações teológicas, litúrgicas, canônicas, morais e, também, as estruturações que o fenômeno monástico iria, aos poucos, conhecendo. Todo um legado experimentava a necessidade de conservação.
Santo Agostinho morreu num período em que o norte da África, um dos centros mais pujantes da Cristandade antiga, testemunha da monumental obra de Santo Agostinho, via-se submetido à perseguição dos vândalos, perseguição esta que levou a que desaparecessem por completo muitas daquelas primeiras fundações e, em médio prazo, a que aquela Igreja sucumbisse numa penumbra da qual jamais se soergueria.
A palavra de ordem entre os cristãos sobreviventes era transferir, “transferir para salvar”: isto ocorreu no tocante aos livros, incluídos epistolário e sermonário, portadores da doutrina e da espiritualidade e, até fisicamente também, no que concerne às próprias relíquias do santo, que hoje descansam em Pavia, nas adjacências de Milão, na Itália.
A literatura que testemunha a perseguição sofrida pelos cristãos no norte africano, nos séculos V e VI, traz-nos alusões, pelo menos curiosas, a servos de Deus martirizados (hoje diríamos “religiosos”) cuja vida trazia inegáveis ressonâncias agostinianas. É notório também o testemunho da existência de fundações semelhantes em solo europeu, especialmente observado na obra de São Gregório Magno, de impressionante substrato doutrinal agostiniano.
Sob o império de Carlos Magno, cujo início, no século IX, assinala didaticamente o fim do período patrístico, devido a uma busca de uniformização daquela experiência inicial de vida cristã comunitária, institui-se a Regra de São Bento como única expressão do que se formalizava como vida monástica na Igreja. (Com profundos elementos agostinianos em sua espiritualidade).
Apesar de desalojada do ambiente monástico propriamente dito, a Regra de Santo Agostinho conheceu outras expressões visíveis no decorrer da Idade Média, nomeadamente em duas vertentes: a dos cônegos regulares e a dos eremitas.
Definições:
a) cônego (canonicus) era o clérigo afiliado ao serviço de uma igreja local sob a direção imediata do bispo – no século XII, a adoção da Regra de Santo Agostinho foi obrigatória para eles, daí “cônegos regulares”, uma modalidade de vida que ainda hoje existe na Igreja.
b) eremita era o cristão que, em comunidade ou sozinho, afastava-se do convívio social para buscar a Deus entre asperezas e mortificações, em lugares ermos.
O Concílio Lateranense II (1139) equiparará as regras de Santo Agostinho, São Bento e São Basílio Magno, esta última expressão do fenômeno monástico oriental. Por ser menos rígida e mais ampla, a Regra de Santo Agostinho seria então adotada por várias formas novas de vida consagrada que surgiam dedicadas à atenção de enfermos, à redenção de cativos ou à pregação.
Depois da ruralização da Idade Média, o ressurgir das cidades revigorava o ambiente urbano e o Espírito Santo, que sopra onde quer, inspirou na Igreja dos séculos XII e XIII a fundação do que então sim se começavam a chamar Ordens religiosas para responder às necessidades daquele mundo que surgia. Paralelamente à estrutura eminentemente rural dos mosteiros beneditinos, nasciam as Ordens mendicantes, de caráter urbano, compostas não por monges, mas por frades, habitando não mosteiros, mas conventos, verdadeiros centros de evangelização e de atenção pastoral às cidades nascentes. Era o tempo de São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão.
O Papa Alexandre IV, em 1256, procedeu à unificação de diversos grupos de eremitas italianos que viviam, em sua maioria, segundo a Regra de Santo Agostinho, sob o modelo mendicante, constituindo assim, pelo que se chamou Grande União, a Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, hoje conhecida como Ordem de Santo Agostinho ou simplesmente agostinianos. A carência de um fundador formal e de prestígio corporativo, e mais se comparados aos franciscanos e aos dominicanos cujos fundadores lhes eram contemporâneos, induziu ao culto à pessoa de Santo Agostinho, ao estudo de sua doutrina e ao apreço especial pela sua Regra.
Com o passar do tempo, e sob a influência do Renascimento, muitas destas Ordens conheceram períodos de grande relaxamento em relação aos primeiros fervores. Nos inícios do século XVI, começará a engendrar-se o que se conheceria como movimento recoleto.
Os agostinianos de Castela, uma das províncias em que a Ordem se dividia, viviam um momento de grande esplendor com frades verdadeiramente santos e exemplares, (Santo Tomás de Vilanova), porém, o autoritarismo de alguns superiores, os privilégios ou isenções da vida comum e as infrações quanto à pobreza deixavam muito a desejar e advogavam em favor de uma vida mais austera e espiritual.
Contando o espírito reformador do Concílio de Trento recentemente celebrado, a província de Castela, reunida em Capítulo, na cidade de Toledo, Espanha, em 1588, para como consta por escrito “não opor obstáculos à obra do Espírito Santo” autoriza a fundação do que se veio a chamar “casas de recoleção”, ou literalmente, conventos nos que se podia praticar uma forma de vida mais estrita. O grande mentor intelectual e espiritual do movimento foi o grande literato Frei Luís de Leon.
Características do movimento: apreço à Regra primitiva, vida comum e pobreza individual, asperezas e penitência, pobreza comum, oração e recolhimento, estudos e apostolado (sim, mas com certo receio...).
De modo paralelo, entre os agostinianos que viviam na América, surge um movimento semelhante na Colômbia, então reino da Nova Granada.
2. Recoleção agostiniana: seus primeiros passos e um duro golpe
A acolhida da iniciativa capitular logo se fez sentir entre os religiosos agostinianos de Castela, muito embora os novos superiores da província fariam, pouco a pouco, ouvir também as suas vozes descontentes com as fundações recoletas sempre mais numerosas. A convivência entre os frades começou a se fazer difícil. Com o apoio da Santa Sé, na pessoa do Papa Clemente VIII, autoriza-se em 1602, a criação de uma província religiosa recoleta dentro da Ordem agostiniana: a Província de Santo Agostinho dos frades recoletos. Tal era a vitalidade do movimento que, em 1605, aprovou-se a ida dos primeiros missionários recoletos às Filipinas. Os desentendimentos com o restante da Ordem eram cada vez mais intensos até que se consegue a supressão da província, que contava já com 23 conventos, sendo mais tarde reabilitada, depois de muitas gestões, em 1616. Procura-se imediatamente fundar na cidade de Roma, em 1619, para, junto à Santa Sé, fazer frente às investidas de alguns setores da Ordem e garantir a sobrevivência da Recoleção.
Cristaliza-se nesta época o sistema de vida que guiará a Recoleção durante dois séculos: conventos que giravam em torno da vida contemplativa na península, sem descuidar totalmente a atenção pastoral (púlpito, confessionário e enfermos, missões populares), paralelamente às missões nas Filipinas.
Em 1621, o Papa Gregório XV, erige a Congregação dos Frades Recoletos Descalços de Espanha e Índias, subdividindo-a em quatro províncias territoriais e mantendo-a ainda ligada à obediência do Superior geral agostiniano, governada porém, diretamente por um vigário geral, que, na prática, era quem exercia autoridade.
As quatro províncias da Congregação recoleta eram: Santo Agostinho de Castela, Nossa Senhora do Pilar de Aragão, Beato Tomás de Vilanova de Andaluzia e São Nicolau de Tolentino das Ilhas Filipinas, esta última com sede no longínquo arquipélago.
Adquire-se forte consciência de grupo com o fortalecimento das estruturas jurídicas, litúrgicas e com a pesquisa histórica das origens do movimento. Em cinqüenta anos de vida, tinham-se desenvolvido hábitos, interesses e atitudes vitais e espirituais que os afastavam cada dia mais dos agostinianos originais e forjavam assim uma nova corporação cujos membros já não se viam representados nem nas leis nem na liturgia e nem nos costumes da corporação que lhes tinha dado o ser.
Em 1666, não sem antes atravessar grandes dificuldades, a Recoleção americana, surgida paralelamente na Nova Granada, unifica-se com a Congregação, passando a constituir-lhe a quinta província, Nossa Senhora da Candelária.
A pujança espiritual da Recoleção foi característica de todo o século XVII, período de sua franca expansão, em que se contou entre outras coisas com verdadeiros incentivos: a canonização de Santo Tomás de Vilanova, padroeiro de uma de suas províncias (1658) e a beatificação de Rita de Cássia (1627), os primeiros martírios de recoletos no Japão, a implicação dos frades na peste que assolou a cidade de Roma entre 1641 e 1651.
O século XVIII, apesar de tudo isso, trouxe certa tibieza e imobilismo a esta organização. A sociedade espanhola era então, a grandes rasgos, uma sociedade sacudida pelo confronto entre liberais e conservadores: derrotada, empobrecida e sem maiores ideais. Perdia-se impulso e fervor místico e não se sabia se de fato as vocações ao claustro não representavam mais que tentativas de se escapar de uma crise social aguda. Juntamente a isso, e mesmo depois de iniciativas que procuravam superar a crise (o patrocínio de São José, 1699; o novo ritual musicado, 1735), conste que as intervenções civis e eclesiásticas foram minando a vida espiritual da Congregação.
Culminando o século XVIII e iniciando-se o XIX, com a crise napoleônica, chegou-se a um verdadeiro golpe fatal, a desamortização de 1835. O próprio termo entranha um preconceito típico dos soberanos então ditos ilustrados, devedores do Iluminismo. A Colômbia, já então nação independente, veria algo semelhante em 1861.
O que foi a desamortização?
Consistiu em colocar no mercado, mediante leilão, as terras e bens não produtivos em poder das assim consideradas «mãos mortas», quase sempre a Igreja Católica ou as ordens religiosas e territórios nobiliários, que os tinham acumulado com o passar dos anos como habituais beneficiárias de doações ou testamentos. Sua finalidade foi a de acrescentar a riqueza nacional e criar uma burguesia e classe média de lavradores proprietários. Além disso, o erário obteria ingressos extraordinários mediante os quais se pretendia amortizar os títulos da dívida pública.
Este processo se deu, na verdade, em diferentes etapas, porém, com a morte do rei Fernando VII, em 1833, e a regência de Maria Cristina de Bourbon, o ministro da Fazenda Juan Álvarez Mendizábal levou a cabo a terceira e mais profunda destas reformas, incluindo apenas bens da Igreja e das ordens.
No lapso de tempo entre 1834 e 1836, quase todos os conventos masculinos da Espanha tinham sido suprimidos e os religiosos obrigados a viver fora deles e a despojar-se do hábito. Os 33 conventos das três províncias agostinianas recoletas que estavam sediadas na península extinguiram-se e poderia ter sido este o triste fim da Congregação de Agostinianos Recoletos não fosse a permanência do convento de Monteagudo, na região de Navarra, cuja finalidade era a de preparar missionários para as Filipinas. Apesar de seus princípios contrários à vida religiosa, ao governo interessava manter o fluxo de missionários para a Ásia como instrumento da presença de espanhóis naquelas terras. Sem Monteagudo, a Recoleção não existiria como, de fato, se extinguiu entre os agostinianos de outras nações, também elas promotoras de desamortizações, tais como Portugal e França.
Despojada de seus conventos na Espanha e impedida de praticar a vida comum, a Congregação Recoleta converteu-se numa corporação eminentemente missionária e apostólica, acomodando-se ao sistema de vida que, até então, desde a sua fundação em 1621, tinha sido próprio e exclusivo da província das Filipinas.
3. Reorganização da vida Agostiniana Recoleta
Em 1898, porém, a Revolução Filipina e a conseqüente independência daquele país produziu um novo choque na vida dos Agostinianos Recoletos, obrigados a deixar aquele arquipélago tão singularmente ligado à história da Congregação já fazia quase três séculos. Este fato esteve na origem da expansão que a Recoleção conheceria, a partir de então, pelo continente americano, uma vez que os poucos conventos existentes na Espanha não seriam suficientes para abrigar todos os religiosos que vinham expulsos do oriente. Mudaria, portanto, o campo de apostolado da Congregação, embora o apostolado em si continuasse a ser a característica mais visível da sua vida e espiritualidade.
Tem início com esta nova abertura de horizontes a fase que se conhece como a normalização da vida da Congregação e surgiu, com a primeira celebração de um Capítulo geral ordinário depois de muitos anos, em 1908, a idéia de restaurar as antigas províncias suprimidas com a desamortização.
Já a partir de 1888, Santo Ezequiel Moreno empreendera a heróica tarefa de restaurar a província colombiana de Nossa Senhora da Candelária, suprimida nos idos de 1861 por processo análogo ao que, décadas antes, tinha ocorrido na Espanha.
Desde a volta das Filipinas, tinham-se aberto casas novamente na Andaluzia, algumas das quais ainda existem e são já centenárias, nas cidades de Granada e Motril. Com estas e as já então existentes no Brasil, onde os Agostinianos Recoletos se faziam presentes desde 1899, restaurou-se aos 10 de junho de 1909, a Província de Santo Tomás de Vilanova, constituindo-se como a terceira província da Congregação, detrás da província de São Nicolau de Tolentino das Filipinas que nunca chegou a ser extinta e da província colombiana de Nossa Senhora da Candelária, então também recentemente restaurada.
Pouco tempo depois, os Agostinianos Recoletos seriam agraciados pelo Papa São Pio X com a autonomia jurídica plena em relação aos demais agostinianos, recebendo a até então Congregação o status de Ordem religiosa independente, subordinada a um Superior geral próprio, aos 16 de setembro de 1912: Ordem dos Recoletos de Santo Agostinho, mais tarde, Ordem dos Agostinianos Recoletos.